Esta postagem é um rascunho, como muitos outros que você verá na Biblioteca do Levante-Bh. Afinal, o website Levante-BH serve também para isto: ser um local onde os insurgentes da rede Levante-BH possam publicar não apenas textos completos, mas também rascunhos de ideias e insights.
A diferença é que, diferente de uma anotação que fazemos em um caderno de notas ou em um pedaço de papel que guardamos dobrado dentro de um livro, nossos rascunhos são escritos e publicados on-line. Assim fazendo, qualquer pessoa poderá ler nossos verbetes, mesmo sendo apenas rascunhos, se os encontrar e por eles se interessar.
Pois bem. Em junho de 2019, fui a dois eventos que me marcaram especialmente: uma exposição de arte e uma peça de teatro. Descrevo-os, sucintamente.
A exposição O tempo mata apresenta uma pequena parte da Julia Stoschek Collection (JSC), mantida pela Julia Stoschek Foundation. Baseada em Dusseldorf e Berlim, segundo afirmado em sua home page (link), a JSC é uma coleção internacional privada de arte contemporânea com foco na arte baseada no tempo (time-based art). O nome da exposição causa estranhamento a quem está acostumado a usar a expressão “matar o tempo”. Dizer que “o tempo mata” não é algo habitual, mesmo concordando com Danilo Santos de Miranda que “No frenesi de acessos, comunicações e deslocamentos, o tempo escoa, falta, acaba, sufoca”.
Percorrer essa pequena exposição foi um deleite. Ela é pequena em espaço físico, com poucas obras, mas mesmo assim não é possível assistir a tudo. Não há tempo para pessoas como eu, meros turistas. Assistir ao aparentemente pouco que está exposto demanda mais de dez horas: não há tempo, repito, o que não deixa de ser um paradoxo.
O que me restou fazer, no pouco tempo que eu tinha, foi devorar fragmentos de imagens. O que ajudou, e continua ajudando, na digestão é a existência de uma belo catálogo, de distribuição gratuita, que permite ler um pouco sobre o que vi, mesmo já estando tão longe do local da exposição. Daqui de Belo Horizonte, ainda me lembro de algumas imagens que, enquanto escrevia estas palavras, podiam estar sendo vistas por outras pessoas, em salas e também na fachada do Sesc Avenida Paulista, em São Paulo.
Um dos vídeos me capturou: Lovely Andrea, da artista alemã Hito Steyerl. No catálogo da exposição, Patrícia Mourão diz que “a artista não poupa esforços para promover aproximações inesperadas e abruptas entre dados, imagens, textos e referências pertencentes a universos tão distintos quanto os da música pop, da filosofa política, do desenho animado ou do noticiário econômico”. Ora, essa é uma tônica constante em todo o meu percurso profissional, que faço a todo momento, ampliando a minha biblioteca. Nesta que é, agora, a Biblioteca do Levante-BH, estou a todo momento buscando aproximações de tudo que vejo, leio e escuto na busca de encontrar formas de garantir o direito à cidade, em sentido amplo, para todas as pessoas.
Hito Steyerl coloca em seu vídeo de quase meia hora, lado a lado, imagens diversas como de uma sessão de bondage e de cenas de desenho animado da Mulher-Aranha. Ora, a arte produzida nesse vídeo é uma narrativa visual do que o Levante-BH pretende ser: uma amarração de ideias por meio de uma rede. Não é a toa que uma das cidades mais fascinantes do mundo, para mim, é Nova York, onde vive o Spider-Man. Confidencio, aqui, uma lembrança. Certa vez, tive um déjà vu diante dos dois leões de pedra que ladeiam a escadaria da entrada da New York Public Library na 5ª Avenida. Naquele momento, virei de costas para eles, olhei para a rua e disse a mim mesmo: “Aqui morreu o tio Ben”.
Após a exposição fui assistir à peça Kintsugi 100 memórias do Lume Teatro. Como o próprio nome da peça antecipa, trata-se de uma obra sobre a memória. Mas é também uma peça sobre o tempo, ainda mais para quem havia acabado de ser alertado que “o tempo mata”. Acredito que a peça não deva ser, aqui, narrada: ela é, isto sim, para ser assistida. Os artistas sequer distribuem o programa antes da peça, como é de praxe, talvez para não interferir no que será visto, ouvido, sentido.
Entretanto, uma peça impactante como esta, uma vez encenada, certamente será objeto de muitos comentários. Isto me autoriza, penso eu, a dar um spoiler. Durante o espetáculo, cada um dos espectadores certamente se verá em um ou mais das “100 memórias” narradas pelos atores. Eu me vi em várias, como na coleção de moedas, nos recortes de jornal, nos álbuns de retratos. Outro spoiler: ao final da peça um dos atores – Jesser de Souza – recita o poema Na noite terrível de Álvaro de Campos. Recebi como um bálsamo o conhecido verso “Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver”.
Explico: quando pensei em iniciar a construção da rede Levante-BH, consolei-me com esse pensamento: se essa rede acabar não conseguindo executar nada de concreto, se não conseguirmos superar os desafios postos por nós mesmos, pelo menos eu sonhei. Melhor: “eu tive um sonho”, parafraseando Martin Luther King Jr.
Se a rede Levante-BH não prosperar, pelo menos eu fiz um movimento para tentar manter fisicamente mais por perto algumas pessoas que eu admiro, que têm compromissos éticos que interagem com os meus, além de abrir as portas para contatos, infinitos, que poderão acontecer.
E agora, enquanto rascunho e publico, on-line, essas ideias, fico ainda mais seguro de que construir a rede Levante-BH, onde pessoas possam ir se encontrando para tecer uma rede, é uma boa forma de não deixar que o tempo nos mate, de não deixar que nossas memórias se percam. Sonhar esse sonho é, sim, uma utopia. É a utopia de insurgentes, de libertários, de dissidentes. Nossa rede inicial é formada por pessoas que, mesmo diante da barbárie que nos rodeia e nos sufoca, continuam apostando que é possível vivermos em um mundo diferente e melhor.
Marcos Fontoura de Oliveira
PS: Em 27 de outubro de 2019 li o artigo Como encontrar a felicidade em tempos sombrios: três passos para olhar o futuro, de Christian Dunker, postado no facebook de Liliana Hermont. O psicanalista me deu mais certeza da necessidade de buscar aliados para trabalhar em rede nesses tempos sombrios. Cito-o: “Neste momento, a névoa de culpa e as sombras do medo cedem lugar para a descoberta de que é nesta hora mais escura que podemos reconhecer quem são, afinal, aqueles com quem podemos contar.”. Ele prossegue: “Freud falava de ‘técnicas de felicidade’ cujos maiores exemplos são o trabalho coletivo, o amor e a criação estética”.
referência para citação
OLIVEIRA, M.F. (2019j): OLIVEIRA, Marcos Fontoura de. Sobre tempo e memória. Levante-BH, Belo Horizonte, 10 jun. 2019 (atualizado em 18 fev. 2023].
ajuste em 21 set. 2019 – 21 de setembro – DIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
ajuste em 28 set. 2019
ajuste (PS acrescentado) em 27 out. 2019
ajuste em 16 jun. 2022
último ajuste em 18 fev. 2023 (para publicar a postagem)
Comment (1)
Márcio C. Batitucci
says julho 25, 2019 at 20:34Prezado amigo Marcos,
Como estás?
Foi muito bom ler o seu texto, me provocou, me fez pensar.
Acho a ideia de uma rede muito interessante, pois precisamos nos aproximar, nós que queremos fazer o sonho de um outro mundo virar realidade. Penso que também pode ser o local para que muitas ideias nasçam e gerem frutos , enquanto praticamos o que é mais difícil para atingir mudanças consistentes no mundo, que é o esforço pelo debate construtivo, onde ninguém quer uma boa ideia só para si, mas divide seu conhecimento, seus saberes e ainda suas dúvidas para o bem comum. Acho, cada vez mais, que avançar para uma outra realidade depende disso.
Abraço forte e saudoso!
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