KALACHE, A. (2021a): KALACHE, Alexandre. Idadismo tóxico. Folha de S.Paulo, São Paulo, 31 mar. 2021. Disponível em: internet. Acesso em: 4 abr. 2021.
texto integral:
FOLHA, 100 COMO CHEGAR BEM AOS 100
Idadismo tóxico
Publicação de Janaina Paschoal promove preconceito contra idosos
31.mar.2021 às 23h15
EDIÇÃO IMPRESSA
Alexandre Kalache
Médico gerontólogo, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil (ILC-BR)
SÃO PAULO
Assim se expressou no Twitter, na última sexta-feira (27), a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), não para a surpresa dos que acompanham suas declarações extremadas:
Certamente não estaria pensando em seus próprios pais, se é que tem a ventura de tê-los. Ou talvez sim, “a boca fala do que o coração está cheio” (Lc, 6:25). Portanto, não se pode esperar amor e compaixão de alguém em cujo coração eles não parecem habitar.
Muito embora a deputada se diga cristã incondicional, seu argumento é tóxico, alimenta a desarmonia entre gerações em um momento que tanto precisamos de empatia e solidariedade.
Sua publicação desrespeita a premissa fundamental de que “todas as vidas importam”. Por ter sido a deputada mais votada do estado nas últimas eleições, temo que seu posicionamento contamine muitos de seus pares na Assembleia Legislativa.
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Esta é Janaina Paschoal
No centro do debate, está o idadismo. Ainda que preconceito etário possa se manifestar contra qualquer grupo de idade, é inaceitável dar equivalência entre o que alguns jovens experimentam e o idadismo que os idosos enfrentam.
Exemplo: ter um emprego negado por ser ou aparentar ser “muito jovem” acontece. Mas a solução está no simples passar do tempo. Não conheço um caso sequer de alguém jovem a quem tenha sido negado um tratamento médico por ser considerada “jovem demais”.
O inverso se dá quando nos confrontamos com o idadismo contra as pessoas idosas. Todos nós, acima de uma determinada idade, nos deparamos com ele. Perca seu emprego aos 47 anos e observe a dificuldade em se reempregar.
E o passar dos anos só aumentará o preconceito. Ouse passar dos 60, 70 anos e confronte-se com as barreiras para acesso a serviços ou tratamentos. A pandemia apenas escancarou o que já sabíamos e era deliberadamente varrido para debaixo do tapete.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou em 18 de março o Relatório Global do Idadismo e cometeu o erro crasso de dar equivalência ao idadismo contra jovens e o idadismo contra idosos. O último tem, com frequência, a morte como desfecho. É tóxico. “E daí?”. “Já viveram”.
Na terça (30 de março), ao falar na ONU a favor da adoção de uma Convenção Internacional em Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas, fiz menção às raízes de todo tipo de “ismos”: sexismo, racismo, idadismo, LGBTIsmo. São os quatro “Is”:
- Ideologia: crença que um grupo é superior a outro (você vale menos).
- Institucional: o sistema operacionaliza tal crença (por exemplo, negando uma intervenção a um idoso).
- Interpessoal: declarações e piadinhas que apequenam o “outro” e lhes tira a autoestima.
- Internalizado: a pessoa acaba aceitando que vale menos que as demais.
Basta de idadismo.
Quando esta pandemia terminar, as pessoas idosas mostrarão o papel fundamental que sempre têm face a qualquer tipo de crise. São elas que, por já terem passado por poucas e boas, podem ver uma luz no final do túnel. Acolhem, abraçam, acalentam uma sociedade traumatizada. Assim foi e sempre será.
Passada a tempestade, são sempre os mais velhos que mostram, por meio de sua resiliência, o caminho. Na cultura de povos africanos, há um ditado: quando morre um idoso é uma biblioteca que se incendeia. Basta de incêndios.
SÉRIE DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE
A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado neste ano de 2021.
A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).