pesquisa "Como viver junto na cidade"

Convite a um levante

No momento em que começo a escrever estas linhas – entre novembro e dezembro de 2017 – estou em Belo Horizonte, ainda sob o impacto do que vi, ouvi e senti durante um final de semana que passei na cidade de São Paulo. Para que isso não se perdesse, resolvi fazer este registro que você está lendo.

O meu impacto começou quando caminhei até a Praça da República, bem no centro da cidade, tomei o metrô e fui até o Largo da Batata para, após desembarcar, caminhar até o Sesc Pinheiros. Eu já havia feito esse percurso muitas vezes, mas dessa vez alegrei-me especialmente. Senti-me gratificado por ter à minha disposição, para eu poder usar quando (e se) quiser um serviço de transporte público tão eficiente, de tão boa qualidade, tão diferente do que estou acostumado no meu dia-a-dia em Belo Horizonte. Minha primeira sensação do dia foi, portanto, um mix de alegria e de inveja.

Meu percurso naquela manhã tinha um objetivo definido: ir à exposição Levantes no Sesc Pinheiros. Com o nome Soulèvments, a exposição foi aberta ao público pela primeira vez em Paris, em outubro de 2016. Ela esteve exposta em São Paulo de outubro de 2017 a janeiro de 2018 e sua itinerância incluiu, ainda, Barcelona, Buenos Aires, Cidade do México e Montreal.

Levantes é um evento realizado pelo Instituto Cultural Jeau de Paume, de Paris, que acatou a proposta do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman. A exposição é composta por instalações, pinturas, fotografias, poemas, documentos, vídeos e filmes que não pretendem construir uma narrativa cronológica e nem histórica. Ela pretendeu ser uma montagem ou, como vi com meus próprios olhos, uma colagem de fragmentos. E que colagem!

Diferente do que geralmente faço quando vou a um evento desse tipo, dessa vez eu não levei o meu iPhone para registrar as imagens que me impactariam. Por isto, ao chegar decidi ir me detendo um tempo a mais do que eu certamente faria, em cada imagem que eu via e em cada som que eu ouvia, para que eu pudesse melhor registrá-los em minha memória. Esse esforço premeditado não durou muito, pois a sucessão de impactos foi me levando a relaxar da tarefa de ter que me lembrar para, simplesmente, desfrutar do que estava ali. Foi o que fiz, andando pelos corredores da pequena, mas impactante, exposição.

Foi com emoção que revi, dentre muitas outras obras, a Natureza das coisas do belo-horizontino Pedro Motta; gravuras do espanhol Francisco de Goya; fotografias do francês Gilles Caron tiradas de crianças, jovens e adultos norte-irlandeses, nas ruas, jogando pedras em inimigos que não vemos (mas sabemos) quem são; notas de dinheiro nas quais o carioca Cildo Meirelles pergunta quem matou Herzog? e as famosas Soldaderas da Revolução Mexicana. Mal sabia eu que, tempos depois, ficaria sabendo que as mulheres dessa célebre fotografia, possivelmente, não eram soldadas.

Adorei, especialmente, rever uma fotografia de 1969 dos Black Panthers em Chicago, com punhos fechados e mãos levantadas para o alto: ela me transportou à magnífica exposição Todo poder ao povo! Emory Douglas e os Panteras Negras que tive o prazer de ver ali mesmo, no Sesc Pinheiros, no início de 2017. 

Foi também com bons sentimentos que me deparei com imagens que eu nunca havia visto e passam a fazer parte do meu repertório. Emocionei-me ao ficar diante do caderno de notas de Bertolt Brecht para a montagem de Mãe coragem e seus filhos.

Perto do caderno aberto em uma vitrine parei diante da fotografia que Willy Ronis tirou de Rose Zehner falando às suas colegas trabalhadoras da Citroën em 1938. Eu quase a escutei conclamando-as à greve em busca de melhores condições de trabalho. Uma questão técnica impediu a publicação da fotografia na época em que foi tirada e ela só foi conhecida do público em 1979, quarenta anos depois. A foto ficou esquecida nos arquivos do fotógrafo, que só se lembrou dela quando foi convidado a publicar um livro-retrospectiva. Uma vez, finalmente, publicada, Rose se reconheceu na foto e procurou o fotógrafo. Dois anos mais se passaram e eles, finalmente, se encontraram e se conheceram. Ela, então, confidenciou a ele: “Quando eu vi você tirar a foto e ir-se embora, eu pensei que você fosse um policial” [1].

Fiquei sabendo dessa estória bem depois de vê-la na exposição, quando cheguei em Belo Horizonte e fui pesquisar na internet para saber mais sobre aquela foto que me impressionara. Minha pesquisa também me levou a saber que essa insurgente teve uma longa vida, morrendo aos 99 anos. Repouse en paix, Rose Zehner. Merci por nos legar essa bela imagem de seu levante.

Três vídeos de Roman Signer me deixaram siderado na exposição, fazendo-me assisti-los várias vezes como uma criança diante de um desenho animado. Descrevo aqui um deles, de 2005, chamado Rotes Band / Red Tape, ou seja: Fita Vermelha. Um carretel de fita vermelha é desenrolado pela força de um vento que vem do chão. A fita vai voando e caindo e tornando a voar e a cair, tudo isto em função da fita estar mais perto ou mais longe do vento. Isso é tudo o que vemos nesse curtíssimo vídeo do premiado artista plástico suíço. Saí dali com a certeza de que a cada vez que o carretel se desenrolar totalmente, o vento parar e a fita cair totalmente no chão, imóvel, essa fita nunca mais é a mesma que estava totalmente enrolada no carretel antes do vento começar a soprá-la. Que nos soprem bons ventos, então, sempre!

Terminada a minha visita, procurei o catálogo da exposição para comprar, ali mesmo no Sesc. Fiquei bastante decepcionado com a notícia de que “ele ainda não chegou da França, onde foi impresso”. Meu desejo foi frustrado e tive que me contentar com o mini-catálogo distribuído gratuitamente. Fui-me embora do Sesc Pinheiros em direção à Avenida Paulista tomando aquele mesmo belo e eficiente metrô, com suas portas de vidro meio futuristas que separam a plataforma dos trilhos. Meu objetivo era conhecer o novo edifício do Instituto Moreira Salles (IMS).

O local escolhido para abrigar e expor o vasto acervo artístico e fotográfico do IMS está em um dos locais mais caros e cobiçados de São Paulo: Avenida Paulista, próximo à esquina da Rua Bela Cintra. Logo na entrada, me deparei com uma das muitas e belas ousadias do projeto: a recepção está no andar seguinte, deixando o térreo como uma extensão da calçada. Belo presente aos pedestres em tempos de privatização acelerada de espaços públicos. Tomei a escada-rolante e, do primeiro andar, fui diretamente ao último, para poder ir descendo pelas escadas e conhecer cada um dos andares que estivessem abertos ao público. Os impactos nesse percurso não foram menores.

Destaque-se nessa minha visita ao IMS a coleção completa de 83 fotografias da série Os americanos, de Robert Frank, com direito a conhecer parte dos negativos das 27 mil imagens que não compuseram o livro publicado em 1958. Destaque também, para a instigante videoinstalação The Clock, de Christian Marclay, com 24 horas de duração. Claro que me sentei para assistir apenas a um pedaço dela, o que já me bastou para ficar extasiado com a ideia do artista, até mesmo mais do que com o produto em si. Premiado na Bienal de Veneza em 2011, a obra é um filme, resultado de uma longa colagem de fragmentos de muitíssimos filmes, que apresentam ao espectador imagens com relógios ou falas sobre a hora, em tempo real, em total sincronia com a hora exata em que estamos assistindo.

No último andar de quem vai descendo, que é o primeiro do edifício, logo acima do térreo, há uma livraria. O local é convidativo: parece que estamos na rua, com um belíssimo e bem assentado mosaico de pedras portuguesas compondo todo o piso do andar. Como de hábito, fui ver o que havia na livraria e qual não foi a minha surpresa. Lá estava, à venda, o catálogo de Levantes, que eu havia desejado horas antes. Comprei-o imediatamente! No fim do dia, já de volta ao hotel, com a preciosidade adquirida nas mãos e as imagens ainda em minha cabeça, passei horas lendo e revisitando a exposição. Por isso consegui fazer, como faço aqui, um registro tão cheio de detalhes.

Para concluir estas minhas linhas, recorro a Oswald de Andrade, que anda reverberando em minha alma desde que assisti, também em São Paulo, à remontagem de O rei da vela. Em sua A marcha das utopias, Oswald diz que “No fundo de cada Utopia não há somente um sonho, há também um protesto”. Ele explica, citando um estudo de Karl Mannheim, que “toda Utopia se torna subversiva, pois é o anseio de romper a ordem vigente” [2]. 

Assumo, então, que para mim uma utopia é também um levante, uma insurgência, uma dissidência [3]. Parafraseando Henri Lefébvre, acredito no direito à cidade tomado em toda a sua amplitude [4]. E mais: minha aposta é que a marcha humana sobre a Terra segue, como propõe Norbert Elias, um processo civilizador [5].

Por fim, gostaria de fazer um alerta a você que está lendo estas minhas confidências no site do Levante-BH. Saiba que está sendo cúmplice de alguém que, como James Baldwin, não está em silêncio e, portanto, não é nem pessimista e nem amargurado [6]. 

Essa utopia começou a ser gestada enquanto eu me deliciava com os Soulèvements recolhidos por Didier-Huberman e expostos em São Paulo. Ela foi tomando corpo enquanto eu escrevia e reescrevia este texto, enquanto eu saboreava textos e imagens do precioso catálogo. Entre uma escrita e uma reescrita, conversando com amigos mais próximos, fomos concebendo a ideia de instituir uma rede. O resultado inicial é o que você vê aqui. Demos a ele o nome de “rede da acessibilidade, diversidade, sustentabilidade e utopias na mobilidade urbana de Belo Horizonte”. Bem sabemos que se trata de um nome extenso, mas uma rede precisa ter um nome capaz de bem definir o seu objeto. Nossa escolha por uma palavra que o identificasse, como um apelido, uma logomarca, não poderia ser outra: LEVANTE-BH.

Desde o início, nosso principal desafio era (e ainda é) criar uma forma inovadora e insurgente de trabalhar em rede em prol de uma mobilidade urbana para todas e todos em Belo Horizonte. Temos poucas certezas, neste momento inicial de construção de nossa rede, mas uma delas é que não queremos, definitivamente, ser apenas mais um coletivo. Queremos mais do que observar, mais do que criticar, mais do que escrever artigos. Para tanto, precisamos aprender a ser libertários e interferir no cotidiano de Belo Horizonte com ações concretas que sejam capazes de melhorar, um pouco que seja, a vida daqueles que mais precisam [7]. 

Alguns poucos desafios foram formalizados já no início da pesquisam, outros foram posteriormente formalizados, outros mais certamente virão. [8] Desde já, podemos afirmar, apoiando-nos no pensamento de Mario Pedrosa, que o maior desafio será criar as condições para manter a radicalidade do real. [9]

Se este texto lhe agradou, sugerimos que navegue pelo restante do nosso website. Comece pelo poema No governo [10], de Laís Corrêa de Araújo, e em seguida conheça a Biblioteca do Levante-BH. Não deixe, também, de visitar a página “quem somos” para conhecer um pouco sobre cada um/uma de nós que pretendemos construir juntos o LEVANTE-BH. Se você se sentir à vontade, faça contato com um/uma de nós. Será um prazer ter você em conexão com nossa rede.

Abraços,

Marcos Fontoura de Oliveira 

Faça parte

    P.S. (escrito em 30 de setembro de 2022 e corrigido em 2 de janeiro de 2023):
    Mal sabia eu, naquele hoje longínquo ano de 2019, que a epidemia de Covid-19 paralisaria o mundo em 2020. A rede inicialmente idealizada foi, então, transformada e ajustada para ser um dos produtos de uma pesquisa de pós-doutorado denominada Como viver junto da cidade. Essa pesquisa foi formalmente iniciada em maio de 2022 na Universidade de Lisboa para ser concluída em até dois anos. Como parte dessa transformação, este texto confessional tornou-se o Anexo 1 da versão A da introdução do relatório final da pesquisa. Repito, aqui, o que disse no corpo dessa introdução: “se gostar do que leu e/ou se seus interesses convergirem com os meus, faça contato comigo para conversarmos e seguirmos pesquisando juntos. Oxalá isso aconteça”.

    NOTAS:

    1. Essa estória sobre a fotografia de Rose Zehner foi contada pelo próprio fotógrafo em: RONIS, Willy.Interview [entrevista concedida a Michel Doussot]. Blogpasblog, 6 mar. 2015. A fala dela a ele, aqui apresentada, é uma tradução livre minha.
    2. ANDRADE, Oswald de. A marcha das utopias. In: _______Do pau-brasil à antropofagia e às utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p.194.
    3. Para o conceito “insurgência” baseio-me em: ARANTES, Paulo. Depois de junho a paz será total. In: _______. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014. p.353-460.
    4. O conceito “utopista” e a frase “tomado em toda a sua plenitude” estão em: LEFEBVRE, Henri. Introdução. In: _______. Espaço e política. Tradução: Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins. 2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p.34.
    5. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução da versão inglesa: Ruy Jungman. Revisão, apresentação e notas: Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. v.l – Uma história dos costumes. 277p. / 1993. v.2 – Formação do Estado e Civi1ização. 307p. Título original: Über den Prozess der Zivilisation.
    6. Assim relatou Baldwin: “Não. Eu não sou um pessimista. Os pessimistas, tenho percebido, estão em silêncio. Eu também não sou amargurado, por exemplo. As pessoas amarguradas também estão em silêncio.” em: BALDWIN, James. Entrevista ao jornalista Nathan Cohen da Canadian Broadcasting Corporation. In: FUMAÇA. James Baldwin – Ninguém sabe o meu nomePortal Geledés – Instituto da Mulher Negra, 9 dez. 2018. vídeo, 1h02’20”; transcrição em seis blocos. parte V – 1h02’13” a 1h02’57”.
    7. “[…] o papel dos libertários (sejam anarquistas, comunistas, socialistas) consiste em oferecer soluções práticas aos problemas urgentes que o povo enfrenta, através do sistema de autogestão, sob os princípios da liberdade, dignidade e solidariedade.” em: SOUKI, Léa Guimarães. Barcelona: a persistência de uma cultura libertária. Projeto História, São Paulo, n.63, p.240-278, set.dez.2018.
    8. Acesse a página Desafios para conhecer cada um.
    9. “Esse é o grande desafio proposto por Mario Pedrosa a ser enfrentado, pois só o exercício experimental da liberdade é capaz de garantir, na radicalidade do real, as práticas éticas e estéticas." em DOCTORS, Márcio. O desafio de Pedrosa ou a radicalidade do real. In: PEDROSA, Mario. Ocupação Mario Pedrosa. São Paulo: Itaú Cultural, 2023. (Catálogo da exposição, São Paulo, Itaú Cultural, 25 de outubro de 2023 a 18 de fevereiro de 2024). p.70. 
    10. “NO GOVERNO / ‘A seara é grande / mas os lavradores são poucos’ / Os gafanhotos são muitos.” em: ARAÚJO, Laís Corrêa de. No governo. In: _______Pé de página. Belo Horizonte: Nonada, 1995. sem paginação.

    Acesse também as demais referências citadas neste convite: home page de Soulèvements; intervenção Natureza das coisas; gravuras de Goya; fotografias com manifestantes católicos norte-irlandeses nas ruas; intervenção quem matou Herzog?; fotografia Soldaderas; fotografia Manifestations des Black Panters; exposição Todo poder ao povo! […]; fotografia Citroën Javel, Rose Zehner, déléguée syndicale na entrevista de Ronis Willys, vídeo Rotes Band / Red Tape; videoinstalação The Clock; exposição Os americanos; catálogos da exposição Levantes; peças teatrais O rei da vela e Mãe coragem e seus filhos.

    referência para citação desta página
    OLIVEIRA, M.F. (2019k): OLIVEIRA, Marcos Fontoura de. Convite a um Levante. Levante-BH, Belo Horizonte, 1º mar. 2019 (última atualização 16 dez. 2023).

    referências da imageens que ilustram esta página

    MEMÓRIAS REVELADAS (2023[1968]): MEMÓRIAS REVELADAS. Abaixo a ditadura. In: PAZ, Thaís. Edição: Monyse Ravena. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça. Brasil de Fato, Fortaleza, 1º abr. 2020. (mais informações no verbete “Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça” no Brasil de Fato").
    #pracegover: Um homem visto de costas termina a pichação da expressão ABAIXO A DITADURA em um pilar ao lado de uma escadaria. Ele é observado por vários outros homens. Abaixo da pichação há outra: FORA DITADURA.

    RONIS, W. (2015b[1938]): RONIS, Willy. Citroën Javel, Rose Zehner, déléguée syndicale. In: _______. Interview [entrevista concedida a Michel Doussot]. Blogpasblog, 6 mar. 2015. [mais informações na postagem entrevista de Willy Ronis (2015)].
    #pracegover: Uma mulher, em posição elevada e com a mão esquerda em riste, fala para outras mulheres.

    inclusão do P.S. em 30 de setembro de 2022 para transformação da postagem em anexo da Introdução do Relatório Final (versão A) da pesquisa Como viver junto na cidade
    transformação de postagem em página do website Levante-BH em 11 de fevereiro de 2023

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    website LevanteBH foi concebido para permitir o acesso on-line da pesquisa Como viver junto na cidade durante sua realização. Trata-se de um pesquisa científica, sem fins lucrativos e sem apoios financeiros. Até que a pesquisa seja totalmente concluída, as pessoas e entidades parceiras da rede LevanteBH não se responsabilizam pelas afirmações e nem referendam, necessariamente, as recomendações do pesquisador Marcos Fontoura de Oliveira.