Esse livro integra a lista do verbete cidade inteligente
ponto de atenção: usar essa referência na NTL n.º 1 – Definições…
WASHBURN, A. (2017a): WASHBURN, Alexandros. Are Smart Cities Doomed to Promote Inequality? (original: Can the Wired City Also Be Equitable One?). ArchDaily, Septembre 27, 2017. Disponível em: internet. Acesso em: 8 out. 2022.
WASHBURN, A. (2017b): WASHBURN, Alexandros. As cidades inteligentes estão condenadas a promover a desigualdade? Tradução: Gabriella Reis (supervisão: Ana Maria Caetano Pereira). Belo Horizonte, 8 out. 2017.
A seguir, texto integral contido em e-mail recebido de Ana Caetano em 08/10/2017.
As cidades inteligentes estão condenadas a promover a desigualdade? (versão original “Are Smart Cities Doomed to Promote Inequality?”)
(esse artigo foi originalmente publicado por Common Edge como “Can the Wired Cit Also Be Equitable One?” e foi
disponibilizado no site Archdaily por meio do seguinte link: http://www.archdaily.com/880506/are-smart-citiesdoomed-to-promote-inequality – Acesso em: 27.09.17)
(A presente tradução é uma versão livre do texto original, realizada pela estagiária da Gerência de Ações para
Sustentabilidade, Gabriella Reis, com a supervisão da analista de políticas públicas, Ana Caetano, da mesma
gerência)
Uma cidade é inteligente quando toma as melhores decisões e há apenas dois tipos de decisão: estratégica e tática. Decisões estratégicas determinam a coisa certa a se fazer. Decisões táticas escolhem a melhor maneira de fazer isso. Tecnologia inteligente não é tecnologia inteligente se isso causa a nós, como cidadãos, confundir estratégia com tática. Em outras palavras, há muitas decisões sobre a operação da cidade que felizmente podemos delegar para a tecnologia. Mas há questões de governança, de determinação do nosso destino, de decisão sobre qual é a coisa certa a se fazer enquanto população, que se nós delegarmos, nós abdicamos. “Governar é escolher”, John F. Kennedy disse uma vez.
Se eu tivesse acreditado nos vários consultores e emissários de grandes companhias tecnológicas que vieram me ver quando eu era Diretor de Planejamento Urbano da cidade de Nova York, a “cidade inteligente” que eles prometeram era um lugar onde os sinais de trânsito sempre ficavam verdes e as portas dos elevadores sempre esperavam a nossa chegada. Eles prometeram uma cidade que poderia antecipar nossas necessidades todo tempo, graças aos tentadores recursos disponíveis, na atualidade, por meio dos nossos dispositivos pessoais conectados e os aplicativos que nos conhecem melhor que nós mesmos. Agora, com o advento da internet das coisas em um horizonte próximo, nós estamos prontos a fazer das cidades inteligentes uma realidade. Imagine o incrível poder de uma cidade toda sincronizada para nosso gosto e movimento!
Parece muito bom para ser verdade. Eu tenho o sentimento que nossa “cidade inteligente” se baseia em uma mentira, ou, talvez, sendo menos severo, em um erro na gramática, uma confusão de pronomes. Falando sobre as maravilhas antecipadas de “nossa cidade”, nós queremos dizer “minha cidade”. Nós confundimos o coletivo com o pessoal. Isso é relacionado diretamente com nossa relação com a tecnologia “personalizada”. Nós somos levados a acreditar que a tecnologia estaria servindo a “nós”, quando isso significa o indivíduo, o eu. Confundimos o “selfie” com um retrato da humanidade. O que é perfeitamente inofensivo nos pixels do Facebook.
Mas como alguém que tem por ofício construir/planejar cidades, eu gostaria de alertar sobre os perigos, para o eu e para a comunidade, da ilusão de que o que você quer, pessoalmente, é o que todo mundo quer “Eu” não é “nós”.
A cidade é uma criação comum e a cidade não pode “atuar” a partir da perspectiva de cada um como se ele fosse o único que importasse. A luz não pode se tornar verde em ambas direções. Os elevadores não podem ficar esperando em todos os andares. Decisões devem ser feitas sobre qual direção e qual andar e essas decisões, mesmo em circunstâncias mais simples, criam efetivamente ganhadores e perdedores.
Talvez isso não seja tão importante se eu tiver que esperar “uma luz” enquanto alguém passa. De fato, dado o aumento coletivo da eficiência e da segurança do tráfego, eu delego voluntariamente o controle de trânsito a um dispositivo “burro”, como um sinal programado, e espero ansiosamente o advento de um “dispositivo inteligente” como uma interseção sensorial, que me permitirá não esperar se não houver mais ninguém vindo em outra direção. Tudo isso é tática.
Eu até comecei a usar o aplicativo Waze em todos os meus deslocamentos de carro, chegando a perceber que isso realmente me direciona mais rápido de A para B. Eu engoli meu orgulho de urbanista no reconhecimento do mapeamento das ruas e aceitei que o algoritmo roteador com dados em tempo real de fontes múltiplas e usuários é mais competente que eu em achar o melhor caminho. Até aqui, quanto mais eu delego para tecnologia, mais rápido eu vou. Isso é um ganha-ganha. Eu me sinto em casa com nossa sociedade tecno-louca e estou amando isso. E parece não ter fim o quão bom tudo se tornará se eu continuar delegando e algoritmos continuarem otimizando. A luz está verdadeiramente verde!
Mas há um limite para otimização e a indústria financeira descobriu isso. Meu escritório no Stevens Institute of Technology é vizinho do Financial Engineering Program, onde eles aplicam a mais alta tecnologia para entender padrões financeiros. Eu vejo meus colegas analisando os algoritmos de negociação de alta velocidade; eu converso com eles sobre os obstáculos técnicos de identificação de “insider trading”. Estou impressionado com seus instintos bem como suas análises. Eles estão vendo o futuro da negociação em tempo real e é um lugar que há muito pouco espaço para tomada de decisões.
Algoritmos são algoritmos lutadores. Os negociadores (humanos) cada vez mais abominam contrariar as recomendações de seus programas. A próxima geração de negociadores parece ser “quants”. Eles não escolhem ações. Eles escolhem o código. O código faz um algoritmo e o algoritmo faz uma negociação. Mas os algoritmos ultrapassaram a tomada de decisão tática – sobre qual a melhor forma de executar uma negociação – e passaram tomar decisões estratégicas: como derrotar o oponente.
Seus algoritmos estão detectando dados. Eles também estão criando dados para falsificar os sensores de outros algoritmos. Eles registram transações e cancelam essas em nanosegundos, deixando o preço do respondente nu. A tecnologia é muito rápida para a regulação no “mundo inteligente das finanças”. A única premissa é que do outro lado de cada transação bem sucedida há um perdedor. Isso é um jogo de soma zero.
Não é surpresa nenhuma que o Mercado crie vencedores e perdedores. O que é surpreendente é em que grau esses vencedores e perdedores são decididos por algoritmo. Como tal, acho que nos dá um vislumbre de um futuro cívico mais severo que os defensores da “cidade inteligente” pintariam. Sim, a aplicação imediata de “tecnologia inteligente” irá erradicar enormes ineficiências e todos irão se beneficiar com isso. Porém, em algum momento, essas ineficiências coletivas serão superadas e os ganhos individuais exigirão que outros suportem perdas individuais. A precoce e agressiva adoção de sensores e algoritmos pelo mundo financeiro, tornou efetivamente o mundo financeiro inteligente. As mesmas justificativas para o bem coletivo foram invocadas no início por aqueles que construíam, vendiam e aplicavam a tecnologia: aumento da liquidez por meio de uma participação mais ampla; aumento da transparência por meio da coleta de dados. E para onde isso foi? A tecnologia está encontrando a assíntota A curva está aplainando. À medida que os ganhos coletivos diminuem, o futuro de soma-zero se torna mais claro. As batalhas de algoritmo versus algoritmo, de dados versus dados, de um mundo financeiro inteligente nos dá uma breve visão do futuro em nossas cidades, quando talvez percebamos que fomos longe demais na delegação à tecnologia.
Imagine que as estradas tenham chegado à sua capacidade máxima em uma mega cidade e que o aplicativo Waze tenha atingido a assíntota de otimização. Você não irá mais rápido de A para B se você for por este ou por outro caminho. O tráfego se tornou um jogo de soma zero. Para ir mais rápido em uma cidade de soma zero, cada um de nós precisa de um aplicativo “WazeMe” para competir com outros motoristas. Se eu chegar mais cedo, isso significará que outra pessoa chegará mais tarde. Imagine se dirigir pela cidade fosse um concurso entre algoritmos concorrentes. Esses algoritmos usariam os dados existentes, mas eles também criariam dados sintéticos para falsificar os dados de um competidor. Quando otimizamos o coletivo, alguém começa a ganhar e alguém começa a perder. Nós cruzamos a linha das táticas para a estratégia.
Eu não tenho que entrar no mundo financeiro do mercado de ações, mas eu tenho que entrar no mundo das ruas das cidades. Vias públicas são bens públicos, e eu, como cidadão, lutarei pelo meu direito à igualdade de acesso e igualdade de aproveitamento do bem público. Se uma cidade se tornar tão inteligente quanto o mundo financeiro e as pessoas com melhores algoritmos do carro passarem pelas luzes verdes, enquanto eu ficarei esperando na vermelha,
eu lutarei como um louco (contra isso).
A desigualdade de algoritmos já existe entre aqueles que possuem um smartphone e um plano de dados e aqueles sem esses recursos. Isso é justo? Qual o custo que essa desigualdade impõe a uma cidade? Custa uma corrosão da coesão social com base na igualdade de cidadania? Embora minha pesquisa seja baseada na tecnologia da hidrodinâmica e do design urbano em um esforço para tornar as cidades resistentes às mudanças climáticas, descobri que muito mais do que qualquer tipo de modelagem computacional complexa, a coesão social é o pilar da resiliência de uma cidade. Certamente, uma cidade que diminui a coesão não pode ser chamada de “smart” .
A coesão social é uma função da participação e é baseada no respeito. Demonstramos respeito pela forma com que nos comportamos no espaço público. O outro lado do contrato social é que o espaço público tem que ser um bem comum, sem barreiras para entrar. O espaço público cria confiança pública se, e somente se, todos puderem ir a todos os lugares. Jane Jacobs define a participação pública no mesmo sentido: “ As cidades têm capacidade de fornecer algo para todos, só porque, e somente quando, são criadas por todos.”
Encontrar equilíbrio entre a delegação de decisões operacionais e o aumento da participação na governança é muito difícil de se fazer. Há uma analogia biológica no desenvolvimento da separação de funções entre nossos sistemas nervosos consciente e autônomo. O sistema consciente do nosso cérebro resiste a delegar decisões estratégicas ao sistema autônomo do nosso intestino. Tomamos uma decisão consciente sobre o que comer, mas delegamos sobre como digerir ao sistema autonômico, que controla as milhares de contrações sequenciadas necessárias para mover a comida através do nosso sistemas.
Levou o tempo evolutivo e a tentativa e erro da seleção natural para criar o equilíbrio adequado entre os sistemas nervosos consciente e autônomo. Não temos tempo evolutivo para descobrir isso e as consequências de delegar demasiadamente – abdicando de nossas responsabilidades sociais para tomar decisões cívicas – podem ser fatais.
As cidades inteligentes tomam melhores decisões. Mas as cidades que são inteligentes e democráticas fazem as melhores decisões ao permitir que os cidadãos debatam vigorosamente o curso correto de ação e, em seguida, deixando a tecnologia funcionar corretamente.
Alexandros Washburn é o ex-chefe de planejamento da cidade de Nova York e é professor de design da indústria no Stevens Institute of Technology. Ele é o autor do livro “The Nature of Urban Design: A New York Perspective on Resilience”.