É preciso ler este livro
Enquanto escrevo este prefácio, escuto a canção “Os argonautas” de Caetano Veloso com os famosos versos “navegar é preciso, viver não é preciso”. Mesmo conhecendo-os há tanto tempo, mesmo sabendo eles remontam a uma frase dita há mais de dois mil anos, sempre me pergunto se esses dois “preciso” significam “necessário” ou “exato”. Aqui, sem qualquer dúvida, afirmo que é necessário ler “Caminhos para a opacidade” de Gisleide Almeida, por mais inexato que isso possa parecer à primeira vista.
Assim como também aconteceu com a autora do livro que você tem nas mãos, minha aproximação a Édouard Glissant foi fortemente impactada pela visita à 34ª Bienal de São Paulo em 2021. Nessa exposição, que aconteceu durante a pandemia de Covid-19, o Sino de Ouro Preto nos aguardava logo na entrada do pavilhão da Bienal, no topo de uma rampa. Esse sino me inspirou a produzir, com Ronaldo Gouvêa, um ensaio publicado na revista Barroco, que deu origem ao livro “Ouro Preto e o Futuro” em 2023.
Em 2024, foi a vez de Gisleide Gonçalves de Almeida elaborar sua dissertação de mestrado em Filosofia sobre a obra de Édouard Glissant na renomada Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Tive a honra de ser convidado para integrar a banca de avaliação de seu trabalho. Qual não foi minha surpresa e emoção ao saber que o livro “Ouro Preto e o Futuro” havia ilustrado a estética da opacidade. Aprovada com louvor, essa dissertação é a origem do presente livro que, insisto, é preciso ler.
Antes de prosseguir, destaco o nome da impactante 34ª Bienal de São Paulo: “faz escuro mas eu canto”, que tomou um verso de Thiago de Mello em seu poema “Madrugada camponesa”. Escrito entre os anos de 1962 no Amazonas do Brasil e 1963 em Santiago do Chile, ele termina assim: “Faz escuro mas eu canto / porque a manhã vai chegar”. Esses versos tinham endereço certo: as pessoas que atravessavam o escuro da noite no campo e podiam cantar porque sabiam que logo raiaria o dia. Para o poeta, os sonhos que vinham sendo plantados certamente brotariam em breve. Aquele momento de escrita do poema, pré-golpe militar de 1964, era um tempo com promessas de transformação. Muitos eram os projetos progressistas e imenso era o desejo de ampliação de direitos.
Sabemos bem o que aconteceu em 1964… Os efeitos nefastos daquele golpe, passados mais de sessenta anos, nos assombram até hoje. Nós ainda estamos aqui!
Thiago de Mello foi preso em 1968. Em uma cela, surpreendeu-se e reanimou-se ao encontrar os dois últimos versos de “Madrugada camponesa” escritos na parece, deixados por alguém preso antes dele. Quero aqui, seguindo os passos do poeta, repetir o que eu disse a Gisleide há um ano: “sua dissertação me deu ânimo a continuar pesquisando, trabalhando e propondo”.
A autora investiga, a partir do pensamento de Édouard Glissant, o conceito de opacidade como fundamento para uma nova compreensão da alteridade. A opacidade é entendida como a resistência à transparência e à redução do outro, sendo essencial para estabelecer relações respeitosas entre culturas e indivíduos. Ela organiza sua análise em três eixos principais: opacidade como compreensão limitada e não invasiva, opacidade como direito à diferença e opacidade como inesgotabilidade de interpretações.
Gisleide nos propõe a noção de “ética e estética da opacidade” a partir dos conceitos glissantianos de eco-mundo e caos-mundo, revelando como a diversidade cultural e o respeito ao outro constituem caminhos de resistência à homogeneização e à violência. Ela nos oferece uma leitura filosófica e poética do pensamento de Glissant, evidenciando a opacidade como categoria fundamental para pensar a coexistência no mundo contemporâneo.
Ler a dissertação (agora, o livro) de Gisleide Almeida leva-nos a perguntar como transformar o direito à opacidade em algo palpável, prático e desejável. O que devemos fazer para que esse direito entre no nosso rol de direitos a serem instituídos? Como e a quem endereçar propostas concretas capazes de melhorar o dia a dia das pessoas que não estão tendo suas opacidades respeitadas? Pergunto-me isso todos os dias.
Como incorporar no cotidiano ações que contribuam para o direito à opacidade? Como respeitar o outro que não é igual a mim, que não tem as minhas pautas? Como estar em uma fila de supermercado e ter clareza de que, em determinado momento, aquela criança chorando à nossa frente pode ser, tanto uma criança autista como uma criança mimada ou uma criança com fome? Como ser alguém que contribui para a opacidade e não para a opressão? O que fazer para que a indiferença e o egoísmo não se apoderem de nós? A opacidade precisa ser desejada como uma forma de conexão fluida, múltipla e não hierárquica entre os diferentes.
Lendo os “Caminhos da opacidade” aprendi com Gisleide Almeida que “Aristóteles foi quem primeiro pensou e formulou a ética como uma ciência prática, cujo propósito não se restringe ao mero conhecimento, mas se atém à qualidade de nossas ações que levam ao aperfeiçoamento ético”. Isso tem profunda aderência com o interesse de toda pessoa empenhada em melhorar sua responsabilidade intelectual e política, seja na gestão de suas vidas particulares, seja nos seus locais de trabalho, educação e lazer. Essa questão, barthesiana, me interessa especialmente: como viver junto.
Formulo aqui, mais algumas perguntas que buscam respostas. Como materializar utopias, como as ilustradas em “Ouro Preto e o Futuro”? O que precisamos fazer para que os defensores da sustentabilidade defendam a acessibilidade e vice-versa? Como ensinar profissionais da Engenharia, Arquitetura e Design que é necessário aplicar plenamente os sete princípios do desenho universal na concepção de produtos, ambientes, programas e serviços, para que tudo possa ser usado por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico? Como estimular que pessoas pretas se importem com os direitos das pessoas cegas? Como fazer com que homens surdos defendam também os direitos das mulheres sem deficiência? Usando as palavras de Gisleide Almeida: como abrir veredas e construir caminhos para a opacidade?
Prefiro não falar mais, neste breve prefácio, para não interferir na leitura deste precioso livro. Termino de escrevê-lo no dia seguinte ao domingo de Páscoa de 2025, dia mais importante do ano para mais de dois bilhões de pessoas em todo o mundo. O dia 21 de abril, que já era importante como o dia de Tiradentes e o dia da inauguração de Brasília, passa a ser também o dia de morte do papa Francisco, que tanto nos ensinou. Que após algum Habemus Papam sejamos apresentados a um Francisco II.
Registro mais um desejo: que você desfrute deste livro, seja você alguém que já pesquise sobre opacidade e conheça Édouard Glissant ou esteja chegando a esse autor e a esse conceito pela primeira vez. Da minha parte, confidencio que lerei este livro página a página, sem pressa de concluir a leitura, como se fosse a minha primeira aproximação ao pensamento glissantiano. Qualquer que seja sua crença ou sua religião, seja você ateu ou agnóstico, precisamos todos conhecer em profundidade o que é o direito à opacidade. Conhecer esse direito é o primeiro passo para querermos desejar ser dele detentor. A partir daí, então, começa um árduo percurso, em busca de maneiras de efetivá-lo para todas as pessoas.
Conhecer a opacidade é preciso, é necessário. O que não é preciso, pois não é exato, é como efetivar o direito à opacidade. Que cada um de nós encontre, se quiser e puder, a sua forma.
Marcos Fontoura de Oliveira
21 de abril de 2025