RODRIGUES, N. (2012a/b): RODRIGUES, Nelson. Boca de ouro e A falecida. Direção: Marco Antônio Braz. São Paulo, Teatro Sesi-SP, novembro/2012. (programa duplo, fazendo parte do projeto “Nelson Rodrigues 100 anos”).
RODRIGUES, N. (2023c): RODRIGUES, Nelson. A falecida. Direção: Sergio Módena. Elenco: Camila Morgado (Zulmira), Thelmo Fernandes (Tuninho), Stela Freitas(mãe/vidente), Gustavo Wabner (Timbira), Alcemar Vieira (Pimentel), Alan Ribeiro, Thiago Marinho. São Paulo: Sesc Santo Amaro, de 18 de agosto a 1 de outubro de 2023. (programa).
comentário: essa peça integra lista do verbete apontamentos sobre a cidade de São Paulo (set-2023)
crítica no Instagram de Geraldo M. Martins (18/09/2023):
De início, vemos Zulmira (Camila Morgado), de vermelho pálido, no vão da parede, num cenário lúgubre. Ela teria tido o seu tão sonhado e luxuoso enterro? Ela ressuscita e vem contar à plateia suas dores e seus desejos. Mal sabe ela que o que nos contará é a sua ruína. Ao fundo: uma Ave Maria.
O jogo de luz violeta das vestimentas dos mortos é alternado pelo vermelho das paixões avassaladoras. Módena criou uma solução cênica instigante. As entradas dos atores, tal qual personagens vigaristas de desenhos animados, são pequenos quadros: um mosaico. Cria-se para o espectador a ação trágica.
Nesses quadros-cenas há um que é sublime. Zulmira, de pé no caixão, dramatiza o gozo e o êxtase das místicas. Sem o cupido da Tereza d’Ávila de Bernini, Zulmira abraça a morte e o sexo numa luz vibrante: bela cena escultural.
Timbira é transformado por Gustavo Wabner em um sedutor escovinha. Ele o faz muito bem. Com seus comparsas, eles nos lembram aqueles que se enriqueceram em Brasília e debocharam de todos nós durante a pandemia de Covid. O Nelson de Módena é hoje.
O marido-vascaíno Toninho (Thelmo Fernandes) esbanja indolência.
Stela Freitas (vidente e mãe) retrata a esperança do povo sem esperança. Pimentel (Alcemar Vieira), com impactante atuação no momento da virada da história, aparece de vermelho diabólico e com tranças-chifres para afirmar mais uma ruína.
Uma série de tropeços encaminha os personagens ao abismo. Do lado da mulher, o jogo é a doença e a estética da morte. Do lado dos homens: o futebol e a sedução do dinheiro. Formas de gozo insaciáveis.
As várias identificações de Zulmira com a mulher doente, assexuada, mutilada (Glorinha), morta, ressurgem com a mulher sexual e viva. Ela goza dos homens e da vida.
Se Zulmira foi considerada, pelos críticos, a grande personagem da dramaturgia rodriguiana, de outra me lembrei: Lady Macbeth. O fantasma da Lady de Shakespeare visita o Rodrigues de Módena. Em oposição ao desejo, o gozo arruína cada um dos personagens. Zulmira é arruinada pela glória. Ou teria sido por Glorinha? Eis a questão.