ANDRADE, J. (2014a): ANDRADE, Jonathas de. Página do artista. O Levante, 2012-14 [sobre]. Disponível em: internet. Acesso em: 26 set. 2022.
ANDRADE, J. (2014b): ANDRADE, Jonathas de. O Levante (fragmento) – The Uprising (excerpt). vídeo, cor, 1’17”. Disponível em: internet-vimeo. Acesso em: 26 set. 2022.
ANDRADE, J. (2014c): ANDRADE, Jonathas de. Colaboração: Cristina Gouvêa. Curta-metragem. O Levante (2012-13). vídeo, cor, som, 8′, resolução HD. YouTube, 25 jun. 2014. Disponível em: internet. Acesso em: 26 set. 2022.
destaque (contido na página do artista): “O filme foi o pretexto que tornou possível o projeto 1ª Corrida de Carroças do Centro do Recife (2012)”.
trecho narrado no filme “O Levante”:
[…] Não é surpresa que a cidade não é de quem a vive. Não é surpresa que os homens que fazem a cidade, que comem, que habitam, que andam, que vivem, não são os mesmos que regem a cidade, que fazem as leis, que decidem o futuro dessa cidade. […]
conteúdo integral da página do artista sobre a obra:
O Levante, 2012-2014
evento + video + documentação
O projeto surge de toda articulação necessária para tornar possível a 1a Corrida de Carroças no Centro da Cidade do Recife (2012). Este projeto se divide em três partes: (1) o evento da corrida de carroças; (2) o vídeo O Levante (2013), feito com filmagens da corrida e a cantoria do aboiador João Aboiador; e (3) a documentação fotográfica e textual intitulada O que Sobrou da Primeira Corrida de Carroças no Centro do Recife (2014).
Como animais rurais são proibidos no Recife, todos aqueles que se movimentam a cavalo pela cidade são invisibilizados do ponto de vista da lei. Somente tratando a corrida como uma cena para um filme — podendo portanto ser considerada em certa medida “ficção” — é que o evento se tornaria viável e poderia ter as autorizações necessárias para acontecer do ponto de vista oficial.
Duas coisas sobre a presença dos carroceiros e cavalos em todas as partes da cidade. Ao mesmo tempo que eles estão à parte da lógica desenvolvimentista da cidade (e do País), o contraste de sua presença com o trânsito, o asfalto, as torres de 40 andares e todo um projeto de civilização que vai na sua contramão, os carroceiros e seus cavalos são ecos fortíssimos de ruralidade que aponta para as origens desta região. Pouco a pouco fui me dando conta que os carroceiros são apenas mais um lastro de um circuito de ruralidade muito maior, que atravessa toda a cidade e que carrega um projeto civilizatório apoiado em outro paradigma — próprio, não-hegemônico, uma para-civilização rural que coexiste no Recife proto-urbano do Brasil neopotência subdesenvolvimentista. São carroceiros que carregam restos de comida e verduras dos mercados para os vários pequenos currais em quintais de suas casas em diversos lugares da cidade; gente que se movimenta a cavalo pela cidade; feiras de cavalo que acontecem durante toda a semana em vários bairros e cidades vizinhas; são as corridas competitivas de argolinha, as cavalgadas, e o Ramo, a grande procissão de cavaleiros e carroceiros que acontece todo fim de ano.
Ao lado deste panorama, do ponto de vista da legalidade, não é possível ter animais rurais em perímetro urbano. Recife oficialmente é entendida como uma cidade inteiramente urbana, ao contrário de várias outras que combinam trechos rurais com trechos urbanos. Neste sentido, todo este circuito rural é ilegal: as carroças, os cavalos, as feiras, tudo tem de ser invisível aos olhos do poder público e, como absolutamente concreto, existe na marginalidade e sob certo pacto de cinismo. Sempre achei essa contradição uma loucura bem reveladora das forças e ideologias presentes na cidade. Ou seja, entende-se silenciosamente que as leis não precisam ser exatamente cumpridas, mas estão ali para lembrar quem é o verdadeiro dono da terra, e com falsa legitimidade e democracia de fachada, retirar quem incomode quando bem convier.
A ideia do projeto era dar existência celebratória às carroças e aos cavaleiros numa grande tomada da cidade através de uma corrida de carroças no centro do Recife. O que seria impossível do ponto de vista da oficialidade, tornava-se possível por ser um filme a ser gravado. Ou seja, a corrida existiria em termos fílmicos e ficcionais e por isso podia ser autorizada pela administração da cidade/poder público. Para os carroceiros, por sua vez, o filme mal existia, o que existia concretamente era a corrida e os prêmios. A corrida foi divulgada exclusivamente através de um panfleto nas feiras de cavalo e na credibilidade do boca a boca de colaboradores, cavaleiros e entusiastas das feiras de cavalo. O panfleto anunciava a data, os prêmios, o local de concentração e uma nota que o filme “O Levante” seria gravado ali.
Aqui, a arte era o que tornava possível o nó que articulava concretude e invisibilidade, marginalidade e celebração, impossibilidade e insurreição, ilegalidade e ficção. Era a arte que lançava uma faísca absolutamente incerta e bastante arriscada que trazia os carroceiros e cavalos para uma corrida pela cidade. E aconteceu. Depois de muito atraso e um medo danado de não aparecer ninguém, apareceram 40 carroças e vários cavaleiros e tudo ganhou proporções massivas, difícil de controlar. Com dificuldade de manejo e organização, a corrida aconteceu com 10 carroças que ganharam bodes como prêmios. E antes da premiação, foi puxado um cortejo pela cidade com todos os presentes. Num grande bolo de gente, cavalo, carroça, todo mundo foi se misturando, subindo nas carroças, nas calçadas, e o cortejo foi ganhando corpo de massa e ação. A cavalgada começou no caminho previsto, depois um galope, uma gritaria, uma anarquia, e quando chegou a reta da avenida Guararapes, ganhou um desembesto que foi rasgando o centro numa festa, furando o percurso original e saindo do controle de uma maneira maravilhosamente autônoma.
O rito abençoava a invisibilidade em existência celebratória. O filme pouco importava para os carroceiros, e o projeto virou pretexto de gasto de vida e tomada da cidade num golpe e galope. Riscou-se o chão — a pata, a ferradura, a bosta. Incorporaram-se personagens. Apagou-se qualquer protagonismo da equipe e dissolveu-se em massa. Tomou a frente o cavaleiro, o aboiador, a carroça em disparada. Forças vieram à tona em retomada de rédeas, ritmo, embalo — êxtase e desobediência. O barulho das patas dos cavalos sobre o asfalto multiplicavam-se ecoando nos paredões dos prédios e espalhando pela cidade. O som silenciava e demarcava o terreiro. Atmosfera de transe em curso. Presença de espírito, incorporação de desejo — Puro Candomblé. O levante passou a ser mais do atravessamento sensorial e corpóreo que só da formulação política, e o projeto ganhou novo sentido a partir de sua própria reinvenção.
E neste desgoverno todo, o material filmado veio marcado com toda sorte de imprevisibilidade, que agora edito em uma videoinstalação e um dossiê-foto-documentação.
O projeto foi comissionado por Thyssen-Bornemisza Art Contemporary, em 2012.
Registros fotográficos:
Josivan Rodrigues e Ricardo Moura
O Levante, 2012-2013, cor, som, 8 min, resolução HD
O filme foi o pretexto que tornou possível o projeto 1a Corrida de Carroças do Centro do Recife (2012), produzido em colaboração com Cristina Gouvêa.
Créditos
Edição: Tita
Aboio: João Aboiador
Som: Rafael Travassos e Nicolau Domingues
Narração: Claudio Nascimento
Cameras: Amandine Goisbault, Rodrigo Braga, Leonardo Lacca, Mariana Porto, Chico Lacerda, Tião Tião, Felipe Peres Calheiros, Lia Letícia, Mariana Freitas, Olímpio Costa, Rafael de Amorim, Tiago Torres,
Produção urbana: João Lucas, Branquinho, Fernando e Peta
Assistência: Carlota Produções e Esdras Bezerra de Andrade
Agradecimentos especiais: Beloto, Gê Carvalho, Iezu kaeru, João Vale, Josivan Rodrigues, Leonardo Cisneiros, Mercia Souza, Moacir Campelo, Natália Brown, Ricardo Moura, Tássia Durans, Thales Junqueira, Thassia Cavalcanti, Tião Tião, Yann Beauvais e a todos os carroceiros do Recife.