MAL VIVER (2023): VIVER MAL. Direção: João Canijo. Portugal, 2023. vídeo, cor, 127 minutos.
VIVER MAL (2023): VIVER MAL. Direção: João Canijo. Portugal, 2023. vídeo, cor, 124 minutos.
observação: listado em apontamentos sobre a cidade de São Paulo (mar.2024).
críticas de Geraldo Martins no Instagram:
21/01/2024 (link externo):
Em cartaz no cinema, “Mal viver” (2023) é a primeira parte de um díptico do cineasta português João Canijo. Somos afetados, já no início, com o concerto “Enigma Variations” de Edward Elgar: um tema com muitas variações . O longa se passa em hotel modernista que pertence a Sara, uma viúva de longa data. Para lá, Sara leva sua neta Salomé para juntas encontrarem Piedade: filha da viúva e mãe da moça. No hotel decadente também vivem e trabalham outras duas mulheres: Raquel e Ângela. As atrizes encarnam personagens de nomes fortes com impactantes interpretações.
Salomé acaba de perder o pai. Neste ambiente de cinco mulheres, somos levados para o universo do cineasta Bergman e, por que não, do escritor Lúcio Cardoso. São gritos e sussurros em uma crônica do hotel assassinado, numa tela de pinceladas violentas e luzes ocres que transpiram pinturas barrocas. Nesse filme, as relações mãe-filha são dolorosas. As mães negam amor às filhas. Estamos diante da devastação que é, para a maioria das mulheres, a relação com a mãe. Piedade, arrebatada, enlouquecida, repete sua mãe com sua filha. Um círculo de ruínas amorosas maternas culmina em uma catástrofe de sentimentos, que faz “Mal viver” tornar-se viver com maldade. E os homens, onde estão? O pai está morto, o marido também. Uma pequena cadela, de nome “Alma”, é o único ser amado e protegido, quase sempre no colo de Piedade. Seria uma metáfora de que da devastação da mãe e filha só resta salvar a alma?
Quando os créditos começam a subir na tela, ouvimos Amália Rodrigues cantando “Estranha forma de vida”. Vestidos de ceticismo, saímos do cinema despossuídos de esperança. Este universo é um inferno.
IMPERDÍVEL: um dos melhores filmes deste verão.
GERALDO MARTINS – psicanalista.
15/032024 (link externo):
“Viver mal”, segunda parte do díptico de João Canijo, gira agora em torno dos hóspedes do hotel mostrado na primeira parte (Mal viver). As personagens centrais do primeiro filme são figurantes na segunda parte, e vice-versa. Piedade e Raquel servem as mesas com requinte, mostrando-se conhecedoras de vinhos e comidas portuguesas. Em “Viver mal”, vozes e gritos entrecortados nos levam, engenhosamente, ao “Mal viver” e a outras cenas do próprio filme que estamos assistindo. “Viver mal” é dividido em três partes, que são leituras da dramaturgia de Strindberg: “Brincar com fogo”, “O pelicano” e “Amor de mãe”. O diretor mostra-nos um hotel modernista e decadente, com seus quartos iluminados vistos pelo lado de fora: intrigas, discórdias e ruínas das relações. São quadros, à semelhança do que pintou Edward Hooper. As relações estão em crise: o homem amante de sua sogra, o casal de lésbicas, a jovem que é amante do amigo de seu companheiro. Um traço é comum a todas, tal como vimos no primeiro filme: a devastação materna. A interferência da mãe, presente ou ausente no hotel, determina a destruição de vidas amorosas. Elas são cruéis, impedindo suas crias de se separarem delas. Leonor Silveira e Beatriz Batarda fazem interpretações magistrais, prendendo cruelmente seus rebentos. As filhas não conseguem firmar-se diante da demanda de amor e ódio de suas mães. O filme é como uma vaga que não encontra barreira: não há interdição que ponha fim à destruição. É uma metáfora da vida pulsional sem limites, de gozo infinito. Potência de crueldade. Arrebatamento de Eros e seus possíveis laços de civilidade: mal-estar. Como em “Mal Viver”, em “Viver mal” a música “Estranha forma de vida” volta na cena final, dessa vez murmurada quase imperceptivelmente por uma mulher que limpa o vidro de uma porta/janela. Produzido em 2023, esse díptico já anunciava o ano 2024: um ano sujo, com guerras sujas que se arrastam matando inocentes.
Geraldo Martins – psicanalista